Os Três Mal-Amados
fala de Joaquim
(trechos)
O amor comeu meu nome, minha identidade, meu retrato.
O amor comeu minha certidão de idade, minha genealogia, meu endereço.
O amor comeu meus cartões da visita. O amor veio e comeu todos os papéis
onde eu escrevera meu nome.
(...)
O amor comeu minhas roupas, meus lenços, minhas camisas.
O amor comeu metros e metros de gravatas.
O amor comeu a medida dos meus ternos, o número dos meus sapatos,
o tamanho de meus chapéus.
O amor comeu minha altura, meu peso, a cor de meus olhos e de meus cabelos.
(...)
O amor comeu meus remédios, minhas receitas médicas, minhas dietas.
Comeu minhas aspirinas, minhas ondas-curtas meus raios-X.
Comeu meus testes mentais,meus exames de urina.
(...)
O amor comeu na estante todos os meus livros de poesia.
Comeu em meus livros de prosa as citações em verso.
Comeu no dicionário as palavras que poderiam se juntar em versos
(...)
O amor comeu minha paz e minha guerra. Meu dia e minha noite.
Meu inverno e meu verão. Comeu meu silencio, minha dor de cabeça,
meu medo da morte.
João Cabral de Melo Neto
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